Filme que traz a relação conflituosa entre uma mãe solteira e seu filho com trejeitos femininos mostra que os horrores da América Latina estão todos de mãos dadas
Junior é um menino de nove anos que tem um desejo muito palpável: alisar o seu cabelo cacheado para tirar uma foto para a escola fantasiado de cantor. Sua mãe, Marta, uma jovem viúva que perdeu o marido para o tráfico, ao mesmo tempo que se esforça para sustentar sua família, não sabe como agir diante da subjetividade do filho, sobretudo sua preocupação com o visual e sua forma de se expressar para o mundo. Nessa trama dirigida por Mariana Rondón somos levados a um turbilhão de questionamentos que em nenhum momento se perde no decorrer da história.
A começar por Marta que na tentativa de conseguir emprego para colocar comida na mesa esbarra nas dificuldades impostas pelo machismo: ela, que é vigilante, precisa lutar para conseguir uma vaga que seria majoritariamente preenchida por um homem. Mesmo qualificada, o que Marta recebe é apenas uma proposta como faxineira, como se seu lugar fosse apenas limpando algo.
Essa mesma Marta possui uma falta de preparo para a maternidade, tendo que liderar uma família que ela não planejou. Sozinha, mergulhada em uma ignorância densa, ela não sabe como agir com seu filho Junior, que lhe parece estar apresentando características que ela julga serem de “mulherzinha”. A decisão que toma é passar a agir de uma forma que seu filho tenha um exemplo masculino: o trata com desprezo, agressividade e em um ato abusivo, violenta a ele e a si mesma que promete revirar o estômago.
Junior em nenhum momento quer ser uma mulher. Ele só quer ser ele mesmo, poder cantar, dançar e se vestir como da forma que lhe agrada. Existe um motivo pelo qual ele deseja alisar seu cabelo e negar sua negritude: no quadro de fotos do estúdio de fotografia, os meninos negros estão fantasiados de militares, portando fuzis de brinquedo; os meninos brancos estão apenas sorrindo, com um fundo de natureza atrás. Mesmo pequeno, já consegue perceber que a cor da pele pode interferir diretamente em seu futuro.
Carmen, sua avó, é a pessoa que mais lhe aceita. Ela alisa o cabelo do neto, ensina-o a dançar e cantar e inclusive costura uma roupa de cantor para ele, tudo para a foto da escola. Ele, inicialmente empolgado com tudo isso, se revolta contra a avó após achar que a roupa que ela estava confeccionando remetia a algo de mulher. Junior rejeita a representação feminina, querendo se colocar no padrão mais aceito, que é o masculino.
Durante todo o filme existe um conflito interno e externo em Junior que se sente estrangeiro em sua própria casa. Na periferia de Caracas, onde bairros são apenas lugares do tráfico e violência, quando não são apenas dormitórios onde as pessoas chegam e vão entre um expediente e outro de trabalho em um bairro de classe superior a delas, não existe espaço para ser diferente.
Homofobia, racismo, machismo, imperialismo, desigualdade social, relações de trabalho e tantas outras questões políticas são destrinchadas com excelência numa América Latina militarizada e apaixonada por figuras carismáticas que de anos em anos aparecem como heróis.
“Pelo Malo” não é um filme que gera náuseas, mas também não é nada leve. As atuações são tão impecáveis que a vontade é de proteger Junior, ao mesmo tempo que Marta ativa o homicida que existe em cada um de nós. Mas próximo do fim, é possível perceber que talvez as atitude da mãe não sejam apenas crueldades individuais, mas uma cultura carregada de geração em geração. Talvez Junior tenha sido parido pela sua própria pátria.
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