O mundo não espera o luto de Olga em “Dias de Abandono”

Obra narra as etapas de um término, da negação à superação


Avatar de Hernandes Matias Junior

Ótima introdução à literatura de Elena Ferrante, obra narra as etapas de um término, da negação à superação

Fala-se muito que não importa qual seja a história, e sim como ela é contada. Essa premissa se encaixa perfeitamente no livro “Dias de Abandono”, da misteriosa escritora Elena Ferrante. Isso porque a obra conta a história de uma mulher e sua vida pós-separação, tema já explorado em diversos outros livros, filmes, músicas. Mas Elena Ferrante soube como ir até o fundo de poço, onde se meteu sua personagem.

Não é spoiler, no primeiro parágrafo do livro, em uma tarde qualquer, Olga é avisada por Mario, seu marido, que ele irá deixá-la. Ele faz o pequeno pronunciamento sem muita cerimônia ou exagero. Na verdade, ele fala sobre sua vontade de separação como se estivesse contando a ela algo banal que ele viu no caminho de casa, voltando do supermercado. As próximas páginas vão desnudando a protagonista e seu sentimento de abandono. Enquanto Mario vai viver uma nova vida com outra mulher bem mais jovem, Olga se vê perdida em sua própria casa com seus dois filhos, seu cachorro e nenhum emprego.

Olga passa por todas as já conhecidas etapas pós-separação. No primeiro momento, existe uma viagem interna onde revisita o passado em busca de justificativas para a decisão do marido, se ela fez algo, se ele já não mais a desejava, se ele se cansou dos filhos. Por mais traumático que seja sua separação, Olga nesse começo da história parece manter sua sanidade e quer para si não ser uma mulher separada ressentida, e toda essa racionalidade é encontrada pela forma que ela escreve.

É interessante como essa forma de escrever muda com o passar da história, com Olga avançando etapas do pós-separação. A diplomacia do primeiro momento dá lugar à raiva e ao sentimento de perda de controle sexual do marido, quando lembra que agora ele está frequentando a cama de outra. “Você lambe a boceta dela? Come o cuzinho dela? Você faz com ela todas as coisas que nunca fez comigo? Fala!“, diz Olga em um dos muitos momentos em que fantasia sem pausas Mario transando com a nova mulher. Agora que foi deixada, Olga parece amar o marido como nunca antes amou durante os 15 anos do relacionamento, em uma completa obsessão.

Embora a dor de Olga a faz acreditar que o mundo irá acabar todas as noites, os dias seguintes não só amanhecem, mas amanhecem com sol. Não há tempo para viver o luto da separação pois ela possui muitas responsabilidades com sua casa e também seus dependentes. Isso não quer dizer que ela consegue lidar com essas tarefas. “Quando as crianças voltaram da escola eu disse que não tinha vontade de cozinhar, que não havia preparado nada, elas que se virassem“.

Não demora muito para a protagonista entrar em uma espécie de depressão. No ponto alto do livro, fica evidente a total incapacidade de Olga de resolver problemas e de hierarquizar os mesmos conforme suas prioridades. Isso é notado quando ela está em casa com seus filhos, Ilaria e Gianni, estando Gianni muito doente, e com seu cachorro Otto, lutando contra a morte após ser aparentemente envenenado no parque. Mesmo nessa situação, Olga decide ir para o banheiro tomar um longo banho e se arrumar para lembrar de que ainda é uma mulher bonita. A angústia da cena vai aumentando quando Olga se vê impossibilitada de ir em busca de ajuda, pois não consegue abrir a porta blindada recém-instalado que ela encomendou para se sentir mais segura e não consegue ligar para ninguém, pois esqueceu de pagar a conta do telefone fixo e quebrara o seu celular em um ataque de fúria ao lembrar de Mario. Tudo só termina quando Carrano, seu vizinho do andar de baixo, vai até a casa de Olga verificar o que está acontecendo, após ouvir barulhos e encontrar quebrado o vidro da sua janela.

Carrano é um personagem muito importante na história. Usado como objeto por Olga para provar para si mesma que ela ainda era desejada por homens, ele acaba se apaixonando. Mesmo se esforçando, para conquistá-la e ajudá-la nesse momento difícil, Carrano não somente é rejeitado por Olga como também tratado por ela com muito desprezo, tendo ele dito a ela, em momento de desabafo, “Você não é diferente do seu marido; afinal, também ficaram tanto tempo juntos“.

Assim como todas as histórias de separação, a superação do término vem de forma natural e aparece quando menos se espera. O livro tem um final satisfatório e consideravelmente feliz, mesmo que de forma sutil, após toda uma história intensa que consegue tirar o ar até dos mais insensíveis. A obra é uma ótima introdução ao acervo literário de Elena Ferrante.

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Comments (

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  1. Opostos estão mais próximos do que se imagina em “A vida mentirosa dos adultos” – Café Comité

    […] primeiro contato com Elena Ferrante foi no fulminante “Dias de abandono”, que eu contei aqui no blog. Fiquei tão envolvido pela protagonista, pela história e pela escrita da autora que em […]

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