Enigmático, “A Cachorra” acompanha o retrato de uma mãe complexa

Pilar quintana apresenta história coesa e bestial


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Autora colombiana Pilar Quintana utiliza de ambiente familiar aos latino-americanos para contar história coesa e bestial de uma mulher que adota uma cachorra como filha

Conhecida por ser um dos principais nomes da literatura contemporânea na América Latina, Pilar Quintana foi destaque na Flip de 2020, onde conta que escreveu o livro “A Cachorra” no celular, enquanto amamentava seu filho recém-nascido. Talvez a imersão no universo da maternidade tenha sido essencial para que seu livro conseguisse representar de forma tão intragável os mais diversos afetos sentidos por uma mãe.

Na obra somos apresentados ao corpo e ao mundo em que Damaris foi condenada a viver. Pobre, negra e gorda, residente no litoral colombiano, e inserida em um contexto socioeconômico miserável, sem nenhum afeto, e rodeado por pernilongos e muriçocas, ela carrega marcas incuráveis de uma trajetória difícil, de dores que não passam, estando entre elas a sua angústia por não ter conseguido ter um filho com o marido Rogelio.

Não conseguindo engravidar após várias tentativas frustradas, Damaris já tinha se acostumado com a realidade de nunca conseguir gerar um filho, mas sua posição de mãe inicia quando certo dia decide adotar uma cachorrinha de uma senhora que estava doando toda a ninhada de uma cadela que tinha falecido logo após parir.

A relação de Damaris com a cachorra começa com o esforço que ela faz para alimentar o filhote recém-nascido, que não conseguindo sugar o leite da mamadeira, foi alimentado pela mãe com pão embebido. A cachorra passa a ser o principal foco de atenção de Damaris, que passa o dia alimentando e acarinhando aquele filhote que recebeu o nome de Chirli, o mesmo nome que ela daria a filha que nunca pôde ter.

Chirli não recebera essa nome por acaso, pois Damaris realmente a tratava como uma filha, a humanizando. Esse é o ponto em que a história de amores passa a se tornar uma tragédia. Acontece que uma vez que já não era mais um filhote, Chirli começou a ter comportamentos mais animalescos.

Na primeira vez em que a cachorra fugiu de casa, Damaris a procurou como um filho perdido durante dias a fio. Mas a partir do momento em que Chirli foge mais vezes, Damaris entendeu isso como uma traição, como uma ingratidão a todo o trabalho que ela teve para cuidar daquele filhote que, se não fosse adotado, morreria em poucos dias.

Quando a cachorra volta para a casa prenha, é como se fosse um tiro no peito de Damaris, que não acredita que Chirli tinha sido capaz de tal ato, mesmo tendo sido educada com o maior amor do mundo. A situação piora quando, após dar à luz, Chirli abandona os filhotes e fica sob a responsabilidade de Damaris a alimentação e a segurança da ninhada.

Nesse momento o amor que Damaris sentia por Chirli dá lugar ao ódio, tendo seu ápice quando a cachorra destrói as cortinas de Nicolasito, ex-morador da casa que Damaris e Rogelio tomam conta, que teve uma morte precoce, levado pelo mar.

O desprezo pela cachorra faz com que Damaris a doe para Ximena, moradora do povoado vizinho. A ausência de Chirli faz com que Damaris se sinta leve novamente, sem a dor de ver o “desrespeito” vindo de um ser que ela tanto amou. É muito claro que ela estava esperando conceitos como educação, ética e civilidade enquanto Chirli estava sendo exatamente o que ela é: uma cachorra.

Mesmo tendo sido doada à Ximena, Chirli insiste em retornar para a casa de Damaris, que tenta a todo custo espantar o animal para longe. Até que certo dia Chirli retorna prenha novamente, e Damaris encarna uma imagem bestial, colocando fim na história de uma forma que se confunde o limite entre o humano e o animal.

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