Meu primeiro contato com Elena Ferrante foi no fulminante “Dias de abandono”, que eu contei aqui no blog. Fiquei tão envolvido pela protagonista, pela história e pela escrita da autora que em certo ponto do livro, lá pelo meio, onde Olga mergulha numa depressão onde já não consegue mais hierarquizar seus problemas, eu senti que enlouqueci junto a ela. A experiência foi tão visceral e fiquei tão fascinado pelo modo que Ferrante torna uma história batida em algo genial, que fui logo em busca de mais títulos da autora.
Eis que escolho “A vida mentirosa dos adultos”, seu último romance, lançado em 2019. Embora não seja tão bestial quanto “Dias de abandono” e possuindo alguns clichês, a forma com que Ferrante conta a história a torna automaticamente imperdível de se ler.
O início da história se dá quando Andrea sussurra para a esposa Nella que a filha dos dois é muito feia. A filha, Giovanna, escuta os pais conversando sem eles saberem, e a sentença sobre sua aparência física recai sobre a menina de uma forma quase que como uma traição, vinda do pai que ela tanto ama. Andrea não diz com todas as palavras que a acha feia, mas sim a compara à sua irmã Victoria, com quem rompeu quando morava na parte baixa de Nápoles, antes de prosperar na vida e vir para a parte alta. A comparação, então, tem mais do que um peso estético, e acompanha uma falha de caráter, já que Giovanna sempre ouviu seus pais falarem mal da sua tia que ela mesma nunca conheceu, a relacionando com comportamentos ruins.
Ponto interessante nesse livro é que Giovanna escuta seu pai falando sobre sua aparência justamente no período em que suas mudanças corporais estão acontecendo. Sem conseguir se enxergar mesmo de frente a um espelho, Giovanna recorre a suas amigas Angela, Ida e outros conhecidos para saber se é de fato tão feia. Toda essa busca a deixa confusa, sem saber de verdade quem é, sem saber como é a sua própria imagem e como é percebida pelos outros em volta.
Giovanna entra em uma espiral de pensamentos que faz com que seus pais permitam que ela de fato conheça a tia Victoria, que vive na periferia napolitana. Não é preciso ser gênio para adivinhar que quando Giovanna chega na parte baixa de Nápoles ela não encontra um monstro como pensou que Victoria fosse. No entanto, o encontro das duas representa o início do crepúsculo sobre a imagem que Giovanna tem de seus próprios pais.
Apesar de não ser uma criatura abominável, Victoria é de fato uma pessoa difícil, ressentida e com espírito de vingança para com os pais de Giovanna. Existe uma história por trás do rompimento de Andrea com os outros membros da família, incluindo Victoria. Na tentativa de conseguir uma aliada, a tia tenta abrir os olhos de Giovanna e a incentiva a observar de forma mais crítica as atitudes de seus pais.
Não demora muito para tudo começar a ruir. O que Andrea condena em Victoria é algo que ele também pratica, mostrando seu total desvio de caráter. Nella também mostra que não é a criatura imaculada que sua filha acreditava ser. No final, até a própria Giovanna, já crescida, deseja cometer os desvios que ela própria viu em Andrea, Nella e Victoria.
Muitos pontos aproximam os vários personagens desse livro, mesmo eles sendo tão diferentes. As mentiras conseguem ser democráticas para o homem, professor universitário, morador da parte rica de uma cidade tão desigual, e para a mulher, empregada doméstica, dona de um apartamento suburbano. Toda a pirâmide social compartilha de comportamentos que nem imaginam.

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