Andréa del Fuego apresenta médica obcecada pelo controle em “A Pediatra”

Livro tem protagonista politicamente incorreta, mas deliciosamente carismática


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Cecília é uma mulher filha de um médico endocrinologista pediátrico e de uma enfermeira. Aceitando a facilidade da vida, como ela mesma diz, seguiu na pediatria, área já comum na família, e abriu um consultório em um edifício comercial, no piso em que o seu pai é proprietário. Ninguém percebe, mas Cecília não tem a mínima paciência para lidar com crianças.

Já no início do livro, a protagonista apresenta sua personalidade irônica, sarcástica e politicamente incorreta. Confessa que “fazia bem-feito o feijão com arroz, procedimentos que qualquer pediatra faz”, para esconder sua inaptidão. Cecília sequer se especializou em uma área. Seu desejo foi ser uma generalista, que apenas encaminha as crianças enfermas para os especialistas, às vezes usando a mesma receita padrão que deixa salva no computador, mudando somente o nome do paciente.

Essa decisão de não se especializar foi tomada para evitar lidar sempre com as mesmas crianças e suas mães, ao qual ela chama de “mães-pâncreas”. A fuga dessas relações é uma marca desse livro, com Cecília sendo incapaz de desenvolver laços afetivos.

Após se divorciar do seu marido depressivo, que ela vê como um estorvo, Cecília se envolve com Celso, o marido de uma paciente que ela mesma ajudou no parto (além de pediatra, a protagonista também é neonatologista). Mesmo ela gostando de fato de Celso, a relação entre os dois acaba sendo cômoda para ela, pois são amantes, e no momento em que ela não quiser mais a companhia dele, basta terminar.

Solteira, a protagonista se mostra até revoltada por não estar sendo procurada pelos homens, embora ela possua “seio que criança nenhuma pisoteou até murchar, vagina nulípara, nunca posta à prova, músculo rosa, mucosa vítrea como a maçã de quermesse”. Mas de fato, a relação com Celso se apresenta como o melhor dos mundos, pois ele é quem tem o que perder, casado, com um filho de dois anos e outro à caminho na barriga da esposa. Cecília está livre, podendo andar de mãos dadas com ele até na avenida mais movimentada. A protagonista usa constantemente as pessoas como objetos.

O mesmo acontece com Deise, a empregada doméstica e aparentemente a única amiga de Cecília, que ao invés de desenvolver relações com mulheres mais próximas do seu nível profissional e intelectual, opta por ter a amizade com a própria funcionária, pois, quando desejar colocar fim, é apenas demiti-la.

Durante toda a história fica evidente a necessidade de controle da protagonista, que chega a fantasiar, de forma muito engraçada, narrativas para as outras pessoas do seu convívio. Quando fica sabendo que Deise está grávida de Robson, o segurança da Pinheiros Pizzaria, Cecília cria de forma detalhada em sua cabeça como os dois se conheceram, como foi o sexo, como será depois que Deise tiver o filho, qual o futuro dessa criança. E ela pensa nisso tudo como se fosse uma certeza incontestável.

Defensora da cesárea, Cecília vê como ameaça o crescimento pela busca pelo parto humanizado, domiciliar, onde a mulher pare dentro de uma banheira com água morna. Esse novo movimento tem como guru Jaime, que Cecília toma como rival, e também traça toda a história desse homem na sua cabeça, como em qual carro ele anda, como se casou com um dentista e qual destino eles escolherão para passar as férias de julho.

Em determinado ponto da história, Cecília, até então avessa a crianças, se apaixona por uma, e passa a trata-lo como filho. O afeto que ela sente por esse menino em específico até pode ser de fato um desejo materno que ela nutre internamente, mas também acaba sendo como algo conveniente, pois a criança não é dela de verdade, ela não teria responsabilidade de uma mãe legítima.

Ponto interessante do livro, a mãe de Cecília é personagem secundária, quase invisível na história, onde essa relação inexistente, vista por uma abordagem psicanalítica, possa talvez explicar o comportamento da protagonista.

Cecília tem poucas falas, mas pensa muitas coisas que ela própria sabe que se ousasse em falar, seria prontamente escorraçada. Apesar de tantos pensamentos deploráveis, a personagem é carismática demais. É como uma vilã da novela das oito que todos amam.

O leitor irá repreender facilmente as crenças de Cecília, mas será difícil não gostar dela. A personagem, alguém que com certeza possui questões psíquicas a serem tratadas, proporciona uma narração em primeira pessoa fluida, engraçada, irônica, e momentos que farão quem está lendo dar uma pausa na leitura para simplesmente rir, como quando Cecília vai ao centro Mãe Prana conhecer como são esses encontros preparatórios para as mulheres do parto humanizado; ou quando visita a creche Arte do Crescer, fingindo querer matricular sua filha inexistente, quando na verdade queria apenas conhecer onde Bruninho, menino que ela acredita ser seu filho, passa a maior parte do dia.

“A Pediatra” poderia facilmente se tornar um filme, ou uma série. Apesar de possuir pouco mais de 160 páginas, o livro é muito merecedor de ser explorado em outros formatos. É uma ótima introdução à literatura de Andréa del Fuego e com certeza um dos melhores livros do ano.

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