Filme documentário é uma obra de afirmação a um corpo que pode provocar tudo, menos a indiferença
A teoria da interseccionalidade consiste em um estudo sobre as sobreposições ou intersecções de identidades sociais presentes nos indivíduos. Em termos práticos, é sabido que a mulher está em uma posição de oprimido frente ao homem, mas e se esse homem for negro, gay ou pobre? A mulher continua sendo a oprimida? A teoria de interseccionalidade organiza esses demarcadores e define que uma mulher nunca é apenas uma mulher, assim como o homem também não é apenas um homem. Existem camadas mais profundas, e Linn da Quebrada, sendo travesti, negra e periférica, parece ser um corpo que a sua aniquilação representaria um alívio para a sociedade.
No filme documentário “Bixa Travesty”, dirigido e escrito por Claudia Priscilla e Kiko Goifman, a artista tem todas as câmeras à sua disposição para contar sobre sua trajetória, desde a adolescência difícil até a sua ascensão aos palcos. Aqui, Linn da Quebrada expõe sua sexualidade, sua vontade, seus afetos e tenta questionar os conceitos de gênero, classe e raça, intercalando os pensamentos com as imagens de shows que realiza com a companhia de Jup do Bairro.
A própria grafia inusual das palavras “bicha” e “travesti” já traz um aspecto estético para a obra, mas não no sentido de beleza, e sim de sensação. Parece muito um trabalho para transgredir e incomodar, o que acaba sendo comprovado ao longo do filme, onde são expostos corpos que até então não possuíam nenhuma visibilidade. O título da obra é justificado em como Linn da Quebrada se vê enquanto indivíduo: não somente uma travesti, mas também uma bicha – um novo conceito de gênero ou sexualidade que a artista não conseguiu deixar muito claro o que isso significa de forma mais profunda.
Seu relacionamento com um homem gay vai ao encontro desse novo conceito que já foi apresentado pela artista no seu single de estreia “Enviadescer”: apesar de ser travesti, Linn não se vê atraída por homens que reproduzem uma imagem muito masculina. Durante o filme, enquanto está no salão de beleza, Linn é desestimulada pela profissional que a está atendendo, que diz que homens gays gostam de homens gays. A artista questiona esse arranjo e traz a ideia de mudança, inclusive dizendo que além dela e do seu namorado, existe um terceiro que também está quase entrando no relacionamento, os transformando em um trisal.
Talvez seja possível dizer que os grandes picos do filme sejam os diálogos de Linn da Quebrada e Jup do Bairro, essa segunda sendo além de travesti, negra e periférica, também gorda maior. Ambas conseguem trazer pensamentos profundos sobre suas existências, de uma forma afirmativa e explicitando a potência das duas. Orgulhosas de suas trajetórias, Linn e Jup são pessoas que tiveram que trabalhar para não serem engolidas pelo sistema heteronormativo, e agora se vêem como indivíduos possíveis de receberem afeto.
Apesar da narrativa afirmativa, o filme também expõe momentos de dúvida de Linn, como a sua indecisão em tomar ou não hormônios para adquirir um físico mais feminino; e também os seus momentos de vulnerabilidade, quando a acompanha no momento mais crítico do seu tratamento de câncer no testículo.
Existem momentos em que o filme documentário vai por um caminho cansativo para criar a estética da obra, como quando Linn da Quebrada toma banho nua com sua mãe, ou quando ela brinca nua com os amigos na varanda. Esse excesso de nudez parece ter sido construído apenas para esse filme, não parecendo ser situações banais fora das câmeras. Com dificuldades, Linn tenta explicar “sinto que meu cu foi um centro de forças que foi responsável por uma rede de nervos que fez com que eu me conectasse com meu corpo inteiro”, em um discurso que não quer dizer muita coisa.
“Bixa Travesty” confirma a Linn da Quebrada já conhecida pela transgressão presente em suas letras, e se materializa como uma obra de resistência e afirmação do orgulho negro e LGBTQIA+, sem se deixar levar ao ressentimento.

Deixe um comentário