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Annie Ernaux cria uma sociologia literária em “O lugar”

Em comemoração à vitória de Annie Ernaux no Nobel de Literatura, falamos sobre “O lugar”, seu livro que conta o distanciamento que o conhecimento criou entre ela e sua família

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“Arrisco uma explicação: escrever é o último recurso quando se traiu.” A frase de Jean Genet que Annie Ernaux escolheu para ser a epígrafe de “O lugar” faz muito sentido ao terminar de ler o seu livro, e ecoa por dias a fio depois dessa finalização.

Em uma autossociobiografia, a escritora vai narrar a volta à sua cidade natal para preparar o funeral do pai. Durante essa viagem, compartilha com o leitor a história de vida de um homem que foi camponês, operário, e por fim dono de um café-mercearia, tendo colecionado outros trabalhos em paralelo para conseguir pagar todas as contas.

Nesse livro, Annie Ernaux abre mão de qualquer estilo que pudesse, talvez, transformar o texto em algo poético. “Só há pouco percebi que escrever o romance é impossível. Para contar a história de uma vida regida pela necessidade, não posso assumir, de saída, um ponto de vista artístico, nem tentar fazer alguma coisa ‘cativante’ ou ‘comovente’. Vou recolher as falas, os gestos, os gostos do meu pai, os fatos mais marcantes de sua vida, todos os indícios objetivos de uma existência que também compartilhei”.

A escolha de não querer transmitir nada mais do que a própria palavra possa conceber produziu uma história de escrita crua, objetiva e sem adjetivações e, ainda assim, ou talvez por isso mesmo, muito íntima e profunda.

Ernaux faz o relato de seu reencontro com um mundo que ela precisou abandonar para ingressar em sua atual vida burguesa: sua língua, seus trejeitos, seus costumes. Todo um esforço para se adequar e ser aceita em uma “classe social superior”, enquanto do outro lado, da parte dos burgueses, Ernaux irá contar: “eu participava de um estilo de vida que não se alterava em nada com a minha presença”.

Annie Ernaux by Ed Alcock for the Observer New Review.

E mesmo que a autora cite que ela mudou de classe social, aqui o termo parece ser mais do que uma melhora em sua vida financeira, pois Ernaux não ficou rica. A mudança que a autora narra é o conhecimento que teve acesso, coisa que os pais não conseguiram.

“O lugar” revela justamente essa angústia de ter se intelectualizado vindo de uma família que valoriza pouco os livros. Quase uma traição, ao não viver a mesma vida e não pensar o mesmo que aquelas pessoas que te deram sua primeira formação.

O conhecimento que foi adquirindo, Ernaux diz, parece ter criado um distanciamento entre ela e seus pais, as pessoas que trabalharam a vida toda para fazer com que ela conseguisse chegar a um lugar que os desprezou, sendo que agora esse lugar é algo que eles não entendem.

“O lugar”, Annie Ernaux:

Avaliação: 5 de 5.

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