Na La Plata dos anos 1940, enquanto frequenta “institutos para limitados”, em casa, a jovem Yuna cresce mergulhada no cotidiano precário de sua mãe “professorinha mixuruca e olhe lá”, no de suas primas Petra e Carina, também portadoras de deficiências, e de seus tios e tias, todos às voltas com os cuidados da irmã Betina, infantilizada para sempre em uma cadeira de rodas. Quando conhece o professor José Camaleón, entusiasta do seu talento para a pintura, Yuna vislumbra a possibilidade de escapar do que o destino parece ter lhe reservado.
Embora tenha como protagonistas mulheres deficientes, “As primas” não usa da ferramenta de tratá-las como coitadas. Aurora Venturini escolhe ir por um caminho mais sofisticado e explora a subjetividade e ambivalência das personagens da obra.
A história é narrada por Yuna, que apresenta ao leitor sua vida disfuncional. Abandonada pelo pai e filha de uma professora mãe solteira rigorosa que educa suas filhas com base na régua, a personagem vem de um mundo sem afeto, e isso reflete em sua escrita sem grandes sentimentalismos e uma postura até mesmo dura frente a perdas familiares que sofre ao longo do livro.
Portadora de uma deficiência cognitiva, Yuna compartilha com o leitor a repulsa que ela possui da sua irmã Betina que urina e defeca até mesmo quando está comendo, em uma cadeira própria para deficientes; diz sentir nojo dos seis dedos em cada mão e em cada pé da prima Carina; e confessa a pena que sente prima anã Petra, a qual chama de “liliputiana”. O tom que da escrita é de um humor ácido e de uma profunda autodepreciação..
Yuna consegue unir uma inocência imaculada e seus comentários soam mais como uma sinceridade característica de crianças do que como uma certa maldade deliberada. E toda essa dolorida realidade que vive acaba se tornando inspiração para suas obras de arte, que proporcionam a ela uma ascensão social.
Apesar das deficiências e das dificuldades impostas por elas, essas mulheres mostram que são capazes de sentir amor, raiva, inveja; de criar e se reinventar; de menstruar e engravidar. O que mais reivindicam é serem lidas justamente como mulheres, antes de receberem adjetivos provenientes de suas condições físicas. Um grande acerto da obra é fazer com que o leitor passe a torcer pelas personagens.
No entanto, o livro também mostra como não somos donos de nosso corpo, e sim como ele é dono de nós. Sobretudo, como nós estamos condenados aos nossos corpos até o final da vida.
“As primas” é repleto de histórias de estupros, abortos, prostituição e assassinatos. Ainda assim, não possui uma escrita triste e depressiva, e sim crua, muitas vezes engraçada. Yuna usa uma voz muito particular e aparece como uma narradora que está narrando e aprendendo ao mesmo tempo, convidando o leitor para conhecer um mundo cheio de vulnerabilidades, mas também com muita potência.
“As primas”, Aurora Venturini:
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