“Se Deus me chamar não vou” apresenta criança reflexiva sobre a morte

Livro da paulista Mariana Salomão Carrara é um bom convite à sua literatura


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Paula Mota

Quem narra “Se Deus me chamar não vou” é uma criança de 11 anos. O olhar fresco e bem humorado de quem ainda vê a vida como mistério está aqui, mas vá por mim: não subestime a solidão de Maria Carmem. A aprendiz de escritora, enfrentando as angústias da “pior idade do universo”, irá te provar que é possível, sim, que uma menina seja mais solitária do que um velho. Ao menos uma menina que, como ela, cresce e cria suas perguntas entre os objetos de uma “loja de velhos”. Ali elas já nascem antigas, frescas e pesadas, doce feito da mais dura poesia. 

“Às vezes eu não durmo. Principalmente quando o dia foi tão péssimo que eu não quero que o outro dia chegue porque fico pensando que vai ser pior. Daí, antes de eu desenvolver uma nova técnica, comecei a chantagear Deus.”

No meio das minhas incontáveis embirrações na literatura está a das crianças narradoras, por isso, quando encontro uma por quem tanto me afeiçoei, concluo que Mariana Salomão Carrara é tão habilidosa como Aline Bei a criar esse tipo de personagem. Não sei se é o PT-BR que lhe dá outra graça, ou o facto de Mariana se lembrar bem do que é ter 11, 12 anos, ou de ter a capacidade de transmitir um olhar simultaneamente ingénuo e inteligente, mas a verdade é que esta miúda nunca me aborreceu.

Ficamos dizendo o tempo todo palavras que não são as melhores, as melhores vêm só depois. Por isso que vai ser legal quando eu for escritora, dá tempo de selecionar as palavras.

Maria Carmem é uma excelente aluna do 6º ano, mais encorpada que os colegas e socialmente inepta, que sonha em ser escritora, pensa muito na morte, sofre de prisão de ventre, ajuda os pais numa loja de produtos geriátricos, e apesar de ter uns pais compreensivos e carinhosos, sente-se sozinha no seu núcleo familiar.

Depois que eu descobri que a morte pode ser desse jeito, eu concluí que ela também não precisa de avisar que está chegando, e eu não quero ficar sozinha nem um segundo depois de morrer, então além da minha necessidade de controlar o sono e também o cocô, comecei a tentar dominar a morte, ou pelo menos prever a sua chegada.

É uma personagem de carne e osso, a debater-se com as dúvidas próprias da idade, visto que está “em banho-maria”, como diz a mãe, mas tem angústias que a tornam mais madura. O capítulo 31, que descreve uma noite de insônias enumerando os anseios da narradora compensados pelo imaginário infantil, é um momento de escrita magistral.
Maria Carmem é, no fundo, uma existencialista em miniatura, que pega nas coisas mais triviais e fica a matutar sobre elas.

Eu que terei crescido que nem um apartamento-grosso, e velho, e cheio de umidades, sem delicadezas nem balões coloridos, ninguém passa pra conferir se o vento não me levou porque sou inteira sólida. Acho que vem daí a palavra solidão, pessoas tão sólidas que ninguém vem checar se estão ruindo.

Maria Carmem torna-se vítima de bullying quando uma abordagem mais arrojada a um rapaz não lhe corre bem e a situação agudiza-se quando a mãe publica mais do que devia sobre a sua vida pessoal nas redes socias, mas o problema é aflorado com algumas nuances.

E o mais velho voltou a com a história de BICHA e o mais novo voltou com a história de GORDA e dessa vez eu fiquei parada, bem parada e bem séria, escutando e pensando meu deus quando será que o colégio muda, e se não muda pra onde vão essas pessoas todas depois, será que elas são o mundo, será que os adultos são essas pessoas depois do banho-maria.

Maria Carmem é amorosa e estranha. Estranhamente amorosa.

Ela falou que passaria a ser muitíssimo discreta, mas eu disse que não gosto de discreto. Eu gosto de vaga-lume (…), o vaga-lume que brilha talvez de alegria talvez de dor. Discrição a gente tem quando está fazendo alguma coisa errada.
-Não, Carmem, às vezes a gente é discreto porque os outros são errados.

“Se Deus me chamar não vou”, Mariana Salomão Carrara:

Avaliação: 4 de 5.

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