Logo após ler, e me chocar, com “Partículas Elementares” de Michel Houellebecq, rapidamente fui em busca de outros livros desse escritor francês que possui uma análise que eu diria um tanto quanto acurada daquilo que está acontecendo no contemporâneo. O título da vez é “Submissão”, livro lançado em 2015 que talvez seja a obra mais conhecida dele, e pode ser descrita como uma espécie de distopia teológica tão genial que é comparada a “1984” e “Admirável Mundo Novo”.
Em sua história, o ano é 2022 e após um primeiro turno acirrado entre a Fraternidade Muçulmana e o partido de extrema direita Frente Nacional, os muçulmanos conseguem o apoio do Partido Socialista, que desequilibra a disputa e elege, pelas vias democráticas, Mohammed Ben Abbes o novo presidente da França. Conhecido por ser um político carismático e polido, Ben Abbes começa o desenvolvimento de algumas mudanças sutis na constituição francesa, mas pouco tempo depois a introdução da teocracia, do patriarcado, da poligamia e da sharia torna evidente a transformação de um país até então secular e democrático.
Vale tudo contra a direita
Uma das coisas mais difíceis de se explicar é a forte ligação da esquerda com o islamismo. O conflito Israel e Palestina é um bom exemplo da controvérsia, onde a esquerda defende e até ergue a bandeira palestina contra os judeus, basicamente se unindo ao islã, que representa o extremo oposto dos ideais progressistas. Inclusive, se algum palestino for perguntado sobre o apoio que ele recebe de um gay ou negro, provavelmente irá dispensá-lo, e completará dizendo que esse primeiro deve morrer, e o segundo deve ser proibido de pisar em terras árabes.
Em “Submissão”, acontece o mesmo. Para derrotar a direita, o Partido Socialista se une à Fraternidade Muçulmana, criando uma espécie de islamoesquerdismo, compactuando com o avanço daquilo que os esquerdistas mais dizem combater: o conservadorismo.
Protagonista alheio à realidade do seu país
François, protagonista de “Submissão”, é um professor especialista na literatura de Joris-Karl Huysmans da Universidade Paris-Sorbonne que leva sua vida praticamente em paralelo a efervescência política do seu país. O protagonista por si só pode ser um objeto interessante para uma análise mais aprofundada. Trata-se de um acadêmico que passou a vida inteira na universidade desde a graduação até o doutorado, e que nunca teve um emprego no mercado de trabalho. Tendo vivido de bolsas de auxílio financeiro durante mais de uma década, depois de formado e com um diploma na mão, ele se vê obrigado a trabalhar e, claro, tornar-se professor e continuar na academia foi a forma mais fácil e cômoda que ele conseguiu para poder ter um salário e pagar suas contas. Aqui vemos a representação dos intelectuais acadêmicos que viveram em um reduto cômodo por toda sua vida adulta e que de dentro dessa bolha decide optar sobre os assuntos que estão fora dela.
Na casa dos 40 anos, François é um tipo de personagem já visto em “Partículas Elementares” e que aparentemente também aparece em outros livros do Michel Houellebecq: trata-se de um homem pós-moderno, descrente e solitário, longe da família e incapaz de manter uma relação que vai além do sexo casual. A falta de sentido faz com que esse homem pense que aos 40 anos a sua vida já acabou.
Multiculturalismo exacerbado
Pode-se dizer com tranquilidade que o multiculturalismo é hoje algo muito valorizado, principalmente pelas pessoas que se encontram num espectro político progressista. Mas qual o limite desse multiculturalismo e quando ele deve ser contido para preservar a identidade de uma nação? Michel Houellebecq traz essa polêmica provocação.
François se torna professor na Sorbonne mas não existem alunos franceses em suas aulas. O próprio personagem relata a presença maciça de chineses, africanos e mulçumanos nas classes e a ausência de conterrâneos. Outra evidência que mostra a perda dessa identidade francesa é que mesmo estando em um país que possui uma conhecida e aclamada gastronomia, François está sempre comendo pratos japoneses, mexicanos e tailandeses.
Essa bagunça cultural pode ter causado de fato a perda do vínculo que os franceses possuíam com o seu país. François não se mostra preocupado com a substituição dos valores democráticos, característica histórica da França, pela teocracia. Ao invés disso, prefere pensar na bunda da sua namorada, com a qual vive um pseudorelacionamento.
Adesão da mídia ao islamoesquerdismo
Deve-se admitir que a grande maioria da mídia é sim de esquerda, e em “Submissão” ela se entrega ao novo governo islâmico da França. Durante as eleições francesas os veículos de comunicação não noticiam os conflitos que estavam acontecendo por parte dos apoiadores da Fraternidade Muçulmana; na primeira entrevista de Mohammed Ben Abbes após tomar posse, os jornalistas fazem uma sabatina chapa branca, e sequer elaboram perguntas um pouco embaraçosas que colocariam o novo governante contra a parede; e quando as mudanças na sociedade começam, com as mulheres sendo retiradas do mercado de trabalho, sendo proibidas de estudar e tendo que se cobrir da cabeça aos pés, a mídia sequer faz críticas ao governo.
O motivo disso é essa adesão da esquerda ao islã e o patético pensamento de que criticar os muçulmanos é contribuir para a islamofobia. O silêncio é também por medo, pois na ditadura quem critica não come.
Sociedade anestesiada
Em direção para uma cidade do interior, François para em um posto de gasolina para abastecer e comprar algo para beber. Na loja de conveniência, se depara com a atendente caída no chão, morta com um tiro. O protagonista passa por cima do cadáver, vai até o refrigerador, pega uma bebida e sai da loja. Tudo com uma frieza inabalável. Parece que o personagem não entende a gravidade daquilo que ele acabou de presenciar.
Assim também acontece com a população francesa que não reage às mudanças impostas pelo novo governo islâmico. A sociedade não luta pela sua liberdade, como faria no passado, e hoje a única coisa que se propõe a fazer é subir uma hashtag de protesto nas redes sociais.
Individualismo acima do coletivo
Embora tenha se assustado inicialmente, François passa a ver com outros olhos as mudanças que passam a acontecer na sociedade. O protagonista, que após a vitória islâmica nas eleições é afastado da universidade, é convidado a retornar para assumir seu cargo de professor, com a proposta de ganhar três vezes mais exercendo o mesmo trabalho de antes, só que com uma condição: se converter ao islã.
François até reluta inicialmente, mas o salário de três vezes mais possibilitaria que ele tivesse mais mulheres, agora que o governo permite a poligamia. Ele poderia ter uma mulher para cozinhar, uma mulher para arrumar a casa, e outra mulher para lavar a sua roupa. E as três disponíveis para ele comer.
É claro, diante disso o protagonista se converte e se torna muçulmano. Assim como também se tornaria budista, hinduísta ou judeu. Porque François não se importa com o transcendente, não leva a fé a sério e se dispõe a assumir qualquer crença, dependendo dos benefícios que ele conseguirá. O personagem, que no início da história se reconhece como um homem de esquerda, desabafa no final do livro: “de nada terei a lamentar”.
“Submissão”, Michel Houellebecq:
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